sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Dia 68 – Quando estamos definhando

Capítulo 9 – A volta ao lar: O retorno ao próprio Self

Conto: Pele de Foca, Pele da Alma
(Link para a história completa no menu à direita)

O definhamento e a invalidez

“A maioria das depressões, tédios e confusões errantes da mulher é causada por uma severa restrição da vida da alma, na qual a inovação, o impulso e a criatividade são proibidos ou limitados. As mulheres recebem um enorme impulso para agir proveniente da força criadora. Não podemos ignorar o fato de ainda ocorrerem muitas apropriações e mutilações dos talentos das mulheres através das restrições culturais e do castigo aos seus instintos naturais e saudáveis. Podemos nos libertar dessa condição se houver um rio subterrâneo ou até mesmo uma pequena corrente que escorra de algum lugar profundo da alma para dentro da nossa vida. Se, no entanto, a mulher "longe de casa" ceder toda a sua força, ela se transformará primeiro numa névoa, depois num vapor e afinal numa sombra do seu antigo self selvagem.”

Pessoalmente eu tive muitos momentos desses na vida, e fico bastante feliz ver que em muitos deles eu obedeci o meu instinto e simplesmente fui embora. Lembro que o primeiro deles foi quando eu tinha apenas 18 anos de idade. Eu me sentia sufocada, agredida e mutilada por uma parte da minha família, que possuía rígidos valores sobre como uma mulher deveria ser e como deveria se comportar. Para eles a negociação era muito simples: siga as nossas regras e tenha o nosso amor, ou não siga e ganhe a nossa rejeição. Foi muito difícil para mim ser criada num contexto desses. Eu sofria tentando ser o que eles esperavam que eu fosse, mas aquilo me machucava demais. Cada vez que eu me descuidava e tinha um comportamento regido pelos meus valores pessoais eu era emocionalmente punida. E lá ia eu, novamente, me sentindo culpada e incapaz, voltar a ser uma boa menina para que eles tivessem orgulho de mim.

“A atitude do segundo velho constitui uma reação cultural comum diante da mulher que desenvolveu uma persona impecável, mas que tem de se aleijar toda ao tentar mantê-la. Bem, é, ela está aleijada, mas veja como está elegante, veja como é boa, veja como está se saindo bem. Quando começamos a definhar, tentamos caminhar todas tortas para dar a impressão de que estamos cuidando de tudo, que tudo está bem e em perfeita ordem. Quer seja a pele da alma que nos falte, quer seja a pele criada pela cultura que nos sirva, ficamos aleijadas quando fingimos que nada disso ocorre. Quando agimos assim, a vida se encolhe e o preço que pagamos é muito alto.”

Como vocês podem imaginar isso deixou cicatrizes muito grandes no meu self. Ser valorizada pelos outros virou quase uma obsessão durante a minha adolescência. Mas era difícil, porque meus instintos naturais me faziam agir exatamente o contrário do que esperavam de mim. De todas as crianças da família, e eram muitas, eu fui a que mais recebi medidas ‘educativas’. Hoje, eu consigo olhar para trás e perceber que isso acontecia porque eles percebiam em mim alguma coisa diferente, algo fora do padrão, uma certa força insubordinável que ficava mais forte com o passar dos anos. Eles esperavam que quanto mais velha eu ficasse mais facilmente eu aceitaria as regras impostas. Mas não. Eu não era apenas uma criança difícil e uma adolescente cheia de ‘manias’. Eu era a representação de tudo o que eles gostariam de eliminar da face da Terra: a independência da mulher.

Assim como vítimas de violência, às vezes estamos numa situação emocional tão precária que perdemos nossa capacidade de perceber o que queremos. A única coisa que conseguimos, e com grande clareza, é perceber o que NÃO queremos: não queremos mais sentir dor, não queremos mais ser agredidas, não queremos mais viver pelos valores alheios.

E foi com 18 anos que eu senti esse ‘eu NÃO quero’ pela primeira vez. Eu não quero ser valorizada pela quantidade de regras que eu sigo, eu não quero que o amor dos outros por mim seja condicional, eu não quero conviver com pessoas que não me amam pelo que eu sou, eu não quero ter que ‘pagar’ para ser aceita, eu não quero ser transformada num vaso de decoração de uma sala de estar, eu não quero colocar todas as expectativas de vida num casamento, eu não quero ser uma mulher cuja leitura se resuma às revistas de decoração.

E comecei a viver como eu queria. Depois de alguns meses eu recebi a maior punição possível: me impediram de ir ao enterro de um parente muito querido por mim. E doeu, nossa como doeu! Eu passei uma manhã inteira em casa aos prantos, tentando entender porque logo as pessoas que diziam me amar me puniam dessa maneira. E então eu percebi que eu NÃO queria mais tê-los como família.

Eu deixei de freqüentar toda e qualquer comemoração familiar. Eu não respondia nenhum convite de casamento, nascimento ou velório. Eu não atendia mais nenhum telefonema. Eu saia de casa quando algum parente vinha visitar. Eu proibi minha mãe de me dar notícias sobre eles. Eu devolvi cada presente que me foi enviado. Eu nunca mais pronunciei nenhum de seus nomes. Foi um período muito difícil. Do dia para a noite eu não tinha mais nenhum lugar para ir no Natal, não tinha mais de quem receber um abraço de Ano Novo. E sei que esse era o plano: quando eu não agüentasse mais o isolamento e a solidão, eles imaginavam que eu iria voltar correndo pedindo perdão. Mais depois de um ano, eu simplesmente já havia parado de me importar. Os laços haviam sido cortados.

Eu considero esse ‘eu não sei o quero, mais sem muito bem o que não quero’, como um passo extremamente importante para a cura de uma mulher. Porque quando percebemos o que nos faz mal e quando desejamos que esse mal seja eliminado da nossa vida, já estamos mais conscientes das mutilações que somos vítimas. Ter a capacidade de perceber que estamos definhando é essencial para nos afastarmos de tudo o que representa uma agressão para nossa alma. Significa que lá no fundo, nossos instintos selvagens ainda têm força para nos gritar: ‘Saia daí, agora!’.

“Portanto, às vezes não é apenas a mulher que está definhando. Pode acontecer que aspectos essenciais do seu próprio meio ambiente — por exemplo, a família ou o ambiente de trabalho — ou do seu ambiente cultural mais amplo estejam também se crestando e se desfazendo em pó, e isso a afeta e a aflige. A fim de que ela possa contribuir para a correção dessas condições, é necessário que volte à sua própria pele, ao seu próprio bom senso instintivo e ao seu próprio lar.”


Lição do Dia: lembrando de algumas recordações tristes, mas sentindo orgulho de mim.

Pendências: faço ou não faço uma lista de promessas de ano novo?

Leia o conto Pele de Foca, Pele da Alma completo:  http://querocorrercomoslobos.blogspot.com/p/pele-de-foca-pele-da-alma.html   

Escreva para a Vero: eueoslobos@gmail.com

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