domingo, 21 de novembro de 2010

Dia 58 – Quando o desconforto fica confortável

Capítulo 8 – A preservação do Self: A identificação de armadilhas, arapucas e iscas envenenadas

Conto: Os Sapatinhos Vermelhos
(Link para a história completa no menu à direita)

Armadilha n° 7: A simulação, a tentativa de ser boa, a trivialização do anormal

“Tentar ser boa, disciplinada e submissa diante do perigo interno ou externo, ou a fim de esconder uma situação crítica psíquica ou no mundo objetivo, elimina a alma da mulher. É uma atitude que a isola do que sabe; que a isola da sua capacidade de agir. Como a criança na história, que não expressa em voz alta suas objeções, que tenta esconder sua privação, que tenta dar a impressão de que nada está dentro dela, as mulheres modernas passam pela mesma perturbação, a trivialização do que é anormal. Esse distúrbio está disseminado em todas as culturas. A trivialização do anormal faz com que o espírito, que em circunstâncias normais saltaria para corrigir a situação, afunde no tédio, na complacência e acabe, como a velha senhora, na cegueira.”

Durante muitos anos eu estudei para ser uma cientista. Naquela época eu transformei o darwinismo na minha religião pessoal e explicava qualquer comportamento humano com base na teoria da evolução. Até nas minhas DRs com os namorados entrava algum argumento cientifico para provar que eu estava certa. Confesso para vocês: eu era meio chatinha. Mesmo tendo desistido da carreira, até hoje concordo com uma fé quase religiosa com grandes princípios do darwinismo social (que para quem não sabe é o uso dos preceitos da teoria da evolução para entender os comportamentos sociais dos seres humanos).

Segundo os cientistas só existe um motivo para que a espécie humana tenha se espalhado por todo o globo e dominado todas as outras espécies: a nossa capacidade de adaptação. O ser humano consegue se adaptar a qualquer situação imaginável. Não é à toa que temos cidades no ártico, na Sibéria, na Antártida e no deserto do Saara. Construímos civilizações no oriente médio, no meio das florestas tropicais da América central, numa ilha cheia de vulcões como o Japão. Nós temos o talento de nos adaptarmos a qualquer ambiente, por mais hostil que ele seja. Os seres humanos não dominaram o planeta Terra porque são mais hábeis, mais inteligentes, ou porque aprenderam a se comunicar. Nós dominamos o planeta porque temos a capacidade de nos adaptar às circunstâncias ambientais mais extremas.

Agora você deve estar pensando: ‘nos dias de hoje não há mais necessidade de tamanha adaptação! A vida urbana tornou nosso dia-a-dia tão confortável, que podemos inclusive decidir que temperatura queremos dentro da nossa própria casa!’.

Se você pensou isso me perdoe por discordar 100% de você. Nós usamos esse talento para a mesmíssima coisa que usávamos há milhares de anos atrás: adaptação ao ambiente. Só que o ambiente hoje não é mais a temperatura, as chuvas, o solo, o frio. O ambiente hoje são as situações que nos deixam psiquicamente desequilibradas. Já ouviram falar das mulheres lactantes que vivem nas zonas de guerra? Elas conseguem dormir a noite inteira nos esconderijos subterrâneos sem acordar com o barulho dos bombardeios constantes. Mas, assim que os seus bebês choram, elas imediatamente acordam. Elas se adaptaram tão perfeitamente às bombas, que seus instintos não consideram mais como se elas fossem uma ameaça.

Quando vemos hoje em dia pessoas vivendo situações super estressantes, como lidar com uma doença muito séria, um trabalho quase escravo, ou viver sempre correndo atrás de dinheiro para colocar comida na mesa, e vemos que essas pessoas conseguem ser felizes e seguir com sua rotina dia após dia, estamos vendo agir aí a nossa grande capacidade de adaptação às situações mais desfavoráveis. O mesmo para populações que vivem numa fome ou seca extremas, para pessoas que vivem há décadas numa ditadura, para seres humanos que sofrem diariamente com o preconceito por causa de sua etnia ou religião, para nós brasileiros que aprendemos a viver num clima de violência social constante.

Só que, como no caso das mulheres em países que vivem em guerra, existe um problema muito sério que pode ser causado por essa adaptação: quando você se adapta tão bem a uma situação limite, seu instinto vai parar de te avisar do perigo, já que aquele ‘perigo’ agora faz parte da sua vida.

E porque isso é tão danoso?

Imagine mulheres que apanham do marido todos os dias. Imagine mulheres que são submetidas às ordens de seus parentes mais próximos. Imagine mulheres que foram escravizadas pela maternidade e obrigadas a abandonar uma vida só sua. Imagine mulheres sendo vítimas de torturas psicológicas e violência emocional por anos. Imagine mulheres que abriram mão de realizar qualquer sonho pessoal seu. Elas estão tão adaptadas, que a situação que no início parecia claustrofóbica e destrutiva, agora não passa de uma situação absolutamente padrão para elas. Seus instintos pararam de avisá-las do perigo, pois esse perigo já faz parte das suas vidas.

Quando pensamos numa mulher que tomou uma decisão, aparentemente pequena, de pegar o caminho mais fácil e ser boazinha para ser valorizada pelos outros, estamos falando de uma mulher que no decorrer dos anos vai estar totalmente adaptada e confortável vivendo nessa situação.

Ela vai achar comum as mulheres serem tratadas com inferioridade, ganharem menos que os homens, virarem reféns de seus maridos. Tão comum, mas tão comum, que elas mesmas vão se levantar contra as mulheres que não aceitam as regras da sociedade e perpetuar essa escravidão: não vão permitir que as filhas tenham uma vida sexual saudável, não vão ensinar que se deve realizar seus sonhos, vão exigir que elas abandonem seus desejos em busca de uma vida socialmente estável, etc. São essas mulheres que vão desdenhar das outras mulheres, aquelas que são solteiras, que não se importam com a ditadura da beleza, que não precisam de um homem ao seu lado para se sentirem plenas.

As mulheres, muito mais do que os homens, aprenderam há milênios a se adaptar às piores situações possíveis. Porque eram elas que deviam se manter fortes e de cabeça erguida, para continuar amamentando, alimentando e cuidando de sua prole, não importa se uma guerra ou um vulcão estivessem à ponto de destruir sua cidade.

Mas chegou a hora de pensarmos se não estamos usando esse nosso maravilhoso talento de adaptação contra nós mesmas. Será que estamos nos acostumando com as coisas erradas? Será que já chegamos num ponto onde a violência, a ditadura, a fome e o machismo que submetem as mulheres, ficaram triviais?

“Em termos psíquicos, nós nos acostumamos aos golpes dirigidos às nossas naturezas selvagens. Nós nos adaptamos à violência perpetrada contra a natureza selvagem e sábia da Psique. Tentamos ser boazinhas enquanto trivializamos o anormal. Perdemos, conseqüentemente, nosso poder de fuga. Perdemos nosso poder de lutar pelos elementos da alma e da vida que mais valorizamos. Quando estamos obcecadas pelos sapatinhos vermelhos, todo tipo de fato importante do ponto de vista cultural, pessoal ou ambiental é deixado de lado.”


Lição do Dia: pensando nas situações destrutivas que eu posso estar considerando banais.

Pendências: ajudando o namorado com os seus pepinos de trabalho.

Leia o conto Os Sapatinhos Vermelhos completo: http://querocorrercomoslobos.blogspot.com/p/os-sapatinhos-vermelhos.html  

Escreva para a Vero: eueoslobos@gmail.com


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