terça-feira, 16 de novembro de 2010

Dia 53 – Dá trabalho!

Capítulo 8 – A preservação do Self: A identificação de armadilhas, arapucas e iscas envenenadas

Conto: Os Sapatinhos Vermelhos
(Link para a história completa no menu à direita)

Armadilha n° 2: A velha secarrona, a força senescente

“Somos influenciados por inúmeros coletivos, tanto pelos grupos aos quais nos associamos quanto por aqueles dos quais não somos integrantes. Sejam os grupos que nos cercam de natureza acadêmica, espiritual, financeira, profissional, familiar, quer de alguma outra natureza, eles impõem poderosas recompensas e punições a seus membros e aos não-membros com idêntica aplicação. Eles operam de modo a influenciar e controlar todas as áreas possíveis — desde os nossos pensamentos até a nossa escolha de parceiros e o trabalho da nossa vida. Eles podem também depreciar ou desestimular os esforços que não se harmonizem com as suas preferências.”

É senso comum pensarmos que é a nossa sociedade que molda os indivíduos. Concordo em parte. De fato, um indivíduo é resultado das inúmeras experiências e aprendizados que teve durante a vida, e é o mundo à nossa volta que dita quais experiências são possíveis ou não. Mas por outro lado o ser humano é um universo em si próprio, e é ele quem vai decidir quais escolhas vai ter e que decisões tomar.

Um exemplo: um grande amigo meu sempre teve o sonho de morar isolado do mundo, num monastério. No Brasil, por não participar de nenhuma ordem religiosa, isso seria extremamente complicado, se não inviável. A sociedade que ele faz parte estava limitando as experiências que ele poderia viver. O que ele fez? Saiu do Brasil e foi morar na Índia, onde uma das coisas mais comuns é você conseguir se isolar do restante do mundo e ir morar numa comunidade onde seus membros vivem isolados, rezando e trabalhando.

Mas esse meu amigo só conseguiu achar uma forma de realizar o seu sonho, porque desde muito novo já mostrava muita independência em relação aos valores vigentes. Concordam comigo que se ele fosse uma pessoa padrão, ele estaria preocupado em atingir as metas que nossa cultura nos ensina serem aceitáveis? Trabalharia para pagar suas contas, procuraria estabilidade financeira e status social, consumiria produtos, casaria, teria filhos, e assim por diante. A única forma de ele seguir os seus desejos mais profundos não foi indo para a Índia, mas sim foi se desligando dos valores que todo o coletivo ao seu redor entendia como corretos.
E isso dá um trabalho desgraçado. Vocês têm idéia do quanto trabalhoso é manter sua mente pensante independente do padrão?

Eu como mulher sinto a pressão dos valores dominantes o tempo inteiro, do momento que eu acordo até a hora de ir dormir. Eu acordo e vejo meu irmão espatifado no sofá da casa da minha mãe esperando que ela coloque o seu café da manhã na mesa. Eu saio do meu apartamento e o porteiro faz questão de vir correndo para abrir a porta para mim. Quando entro no metrô uma série de homens engravatados olham para o meu discreto decote e não para o meu rosto. Eu chego no trabalho e vejo meu chefe me tratando como sua secretária particular. Quando meu colega chega, ele faz questão de pagar pelo meu café. Quando saio do trabalho sempre perguntam se eu não quero companhia na volta para casa porque está escuro e tarde e bem, como eu não me sentiria mais segura com um homem ao meu lado? Quando vou ver o meu namorado ele faz questão de me buscar de carro em casa, de me levar para jantar, pagar a conta e me levar para dormir na cada dele.

As pessoas que me conhecem me acham muito revoltada com a vida. Mas gente, se eu não me revoltar com cada um desses acontecimentos, se eu me desacostumar a achá-los infundados, se eu não me mantiver firme em não aceitar ser bancada, ou pelo menos pensar o quanto acho esses valores absurdos, uma hora o coletivo me vence. E quando vejo já estou achando tudo normal e aceitando os valores da maioria. Sim, dá trabalho.

Quando eu decidi tornar a minha filosofia feminista uma prática na minha vida, eu nem imagina contra tudo o que eu teria que lutar. Não são lutas grandiosas e intelectuais não. São pequenas batalhas todos os dias, o tempo inteiro.

Quero que vocês imaginem por um só instante a minha vida de solteira. Porque um namorado me conhece e me ama pelos meus valores, mas um cara que eu acabei de conhecer, ainda não. O meu desespero já começa na hora da paquera. Porque raios para uma paquera dar certo eu tenho que esperar que eu seja xavecada, sorrir e dar risadinhas alegres enquanto escuto um bilhão de frases prontas e uma conversa fútil de um cara querendo se auto promover? Não. Tive que tirar da minha vida a opção conhecer caras na noite. Eles costumam ser padrão, usam um esquema padrão para se aproximar, e até a conversa é padrão. E primeiro encontro? Meus deus do céu que sufoco! Ficar horas na frente de um cara num restaurante sofisticado escutando mais auto-promoção, esperando pelo momento em que ele vai pedir a conta e tentar o primeiro beijo. Não! Abandonei os primeiros encontros.

Descobri que para não aceitar esse padrão machista de sedução eu deveria continuar conhecendo os homens como eu conheço: nos meus meios sociais, com conversas interessantes, e o apaixonamento deve ser mútuo e natural, sem nenhuma situação forçando os dois a se conhecer.

O mesmo vale para quando decidi ser vegetariana, atéia, pró amor livre e pró escolha. O mesmo para quando optei por largar a faculdade, arrumei um emprego de ‘peão’, fui morar com meu namorado sem casar, etc. Se você tem valores diferentes dos valores da sua cultura, sabe a dificuldade que é colocar tudo o que você acredita na vida prática, moldando seu comportamento em cima deles. Porque não vivemos sozinhos. Vivemos nos relacionando com os outros. E se esses Outros têm valores diferentes dos seus, o negócio é saber se manter firme diante de conflitos constantes.

“Obedecer a um sistema de valores tão desprovido de vida provoca uma perda extrema de vínculo com a alma. Independente de quaisquer influências ou afiliações com grupos, nosso desafio em defesa da alma selvagem e do nosso espírito criador consiste em não nos fundirmos com o coletivo, mas em nos distinguirmos dos que nos cercam, construindo pontes até eles à nossa escolha. Nós vamos decidir quais pontes irão se solidificar e ter muito movimento, e quais permanecerão em esboço e vazias. E os grupos com os quais devemos nos relacionar serão aqueles que proporcionarem maior apoio à nossa alma e à vida criativa.”

Sim, minha vida seria muito mais fácil se eu cedesse. Sim, teria menos trabalho, menos conflitos, menos dilemas. Provavelmente mais amigos, mais namorados, maiores chances de emprego. Mas a que preço?

“Se nos afastarmos da nossa vida real e pulsante e entrarmos na carruagem dourada da velha senhora sem vida, estaremos na verdade adotando a persona e as ambições dessa frágil perfeccionista. Então, como todo animal em cativeiro, caímos numa tristeza que leva a uma anseio obsessivo, muitas vezes caracterizado como uma inquietação sem nome. Daí em diante, corremos o risco de nos agarrar à primeira coisa que promete fazer com que voltemos a nos sentir vivas.”

“É importante que mantenhamos os olhos abertos e que consideremos com cuidado as ofertas de uma existência mais fácil, de uma estrada sem problemas, especialmente se nos for pedido em troca que entreguemos a nossa própria alegria criadora a um forno crematório em vez de aquecê-la num fogo criado por nós mesmas.”


Lição do Dia: feliz por todas as batalhas que não cedi, e lembrando os preços que paguei quando acabei cedendo.

Pendências: pela primeira vez na vida consegui viver um mês inteiro com meus gastos e ganhos super controlados! Muito orgulhosa de mim mesma, muito! Por outro lado nunca tive tanta noção de como ganho pouco...

Leia o conto Os Sapatinhos Vermelhos completo: http://querocorrercomoslobos.blogspot.com/p/os-sapatinhos-vermelhos.html  

Escreva para a Vero: eueoslobos@gmail.com

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